um dia antes do nosso encontro final:
olhei pra a foto do dostoiévski na minha parede, naquele momento o achei parecido com lenin. queria ter tido mais tempo pra conversar contigo sobre o “menino lenin”, o “menino marx”…
sabe, depois que li aquele seu exemplar de a obscena senhora d, nunca mais fui a mesma. pelas notas e marcações no livro, você também não. e foi justamente uma frase da hilda que ficou ecoando na minha cabeça naquela véspera do nosso último encontro:
“estão terrivelmente sozinhos, os doidos, os tristes e os poetas”
andei pela casa sem rumo, deitei no sofá — coisa que raramente faço — e, por vezes, fui até a janela. fiquei com os olhos fixos na nossa esquina, mas somente o vento me veio, brisa fria de um abril com cara de junho. aturei bravamente a dor no peito e o nó na garganta que ainda agora me aflige.
almocei tarde, escutei joy division e bebi dois copos de cerveja. li um poema e por um momento, tive esperança.
dia do nosso encontro final:
enquanto aguardo sua chegada pensamentos aleatórios me fazem companhia:
hoje um rapaz passou mal na academia, parece que desmaiou, não sei, não fiquei olhando, nem procurei investigar. curiosidade não é uma das minhas características mais marcantes, pelo menos não esse tipo de curiosidade.
precisava mesmo de um bom prato de macarrão, um ombro amigo e um rumo na vida…
finalmente você chegou, ou devo dizer que parte de você chegou, e não digo isso pelos vinte quilos a menos. você já não me parece mais o mesmo… mas, isso já não me importa mais.
reparou nas semelhanças do nosso primeiro e do nosso ultimo dia juntos?
eu reparei.
veja, andamos a pé pelas ruas da cidade. na primeira vez estávamos na capital do estado. na última vez, no interior.
“esse é só o começo do fim da nossa vida, prepara uma avenida que a gente vai passar”
na primeira vez você cantou sozinho, me apresentando a música — eu não conhecia conversa de botas batidas — na última vez cantamos juntos, era nossa música tema e, você sabe, o momento foi muito bonito, mas antes que pudéssemos tropeçar numa lágrima e cair em um mar de pranto, “porque somos desses” você cortou o clima dizendo algo como:
— tentei tirar ela no baixo esses dias. o baixo daquele cara, lembra?
mais uma semelhança: no nosso último dia juntos, você mencionou o baixo.
no nosso primeiro dia, estávamos na pinacoteca quando seu telefone tocou, justamente o do dono do baixo perguntando sobre o paradeiro do instrumento.
curioso como anos se passaram, ele não foi buscar, o baixo continuava lá, como no nosso primeiro dia, o baixo insistia em compor a figuração e a trilha sonora da nossa história de amor.
a primeira e a última vez — tão caprichosamente iguais em detalhes e sintonia que me pareceu um só dia. o começo e o fim. “o trem que chega é o mesmo trem da partida. a hora do encontro é também despedida”
— o dia tá tão bonito hoje!
eu disse e você concordou comigo muito além de palavras. e de fato, nós fomos testemunhas de que aquele domingo vestiu sua melhor roupa pra nos receber, pra abraçar o fim da nossa história de amor. saem as malditas reticências e entra um ponto final digno. não seria justo ver “nosso amor morrer sem graça e sem poesia”. não o nosso.
logo você, com tabacaria inteira na cabeça, logo eu, que jamais esqueci olhos de ressaca. sim, tínhamos o dever de dar um fim bonito a um amor concebido em verso e dado à luz em prosa. e assim fizemos.
ah, e não foi intencional, só agora percebi mais um paralelo:
você escreveu um texto pra mim no nosso começo. agora, no nosso fim, eu escrevo este texto pra você.
o seu, bonito como são bonitos os começos.
o meu, desajeitado como são desajeitados os finais.
está feito. na lápide, nada de datas e números, apenas, letras, palavras:
“já não vejo motivos pra um amor de tantas rugas não ter o seu lugar”.
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um abraço, um beijo na bochecha e até a próxima!
Joy Division seguido por Bethania e dois copos de cerveja quase vão acompanhados por um pulo do vigésimo andar. Texto incrível. Li com The End, do The Doors ao fundo
👏👏👏👏👏