por sua natureza vergonhosa, caro amigo, alguns acontecimentos preferimos não lembrar. desejamos com toda força do nosso ser, que não tivessem ocorrido, porém, desprovidos do poder de voltar no tempo e impedir esses fatos, o que nos resta é os trancafiarmos no submundo da memória, também conhecido como esquecimento*.
então, fingimos que não existem - que nunca existiram - enquanto vão conosco para onde quer que formos, porque são parte de nós.
o que quero te que te dizer, meu amigo, é que essas minhas memórias relegadas se acumulam aos montes, desde as mais vis até as mais inócuas.
vez por outra alguma escapa, em fulga, dá de cara comigo, nua, no meio da sala às duas da tarde de uma terça-feira chuvosa. outras vezes, como agora, sou eu quem desce para dizer:
— oi, vamos sair um pouco, vou te apresentar um amigo.
— essa é a lembrança de um dos primeiros textos que escrevi.
— esse é um leitor da minha newsletter.
— como pode notar, amigo, ela carece de beleza, mas tem lá seu valor. se me permite, vou descrevê-la, mas sem entrar em pormenores constrangedores:
o ano era 2004, eu era uma adolescente e tinha escrito um textinho poético - para não dizer que era um poema- com algum grau de sinceridade, é verdade, contudo, o maior problema é que a escrita era pedante - eu era pedante.
pois bem, o texto caiu nas mãos de uns amigos e, como se não bastasse apenas ler em voz alta na minha frente, levaram para escola, leram para os seus colegas de classe e professor e depois me contaram detalhe por detalhe. senti vergonha na hora, senti vergonha nos anos à frente e, ainda agora, me envergonho ao lembrar.
entretanto, o ocorrido diz muito sobre minha relação com as palavras, por isso busquei e te apresentei essa memória, ainda que isso tenha me custado o confronto com a desagradável sensação de ter sido ridícula.
essa memória comprova que o exercício da escrita há muito tempo me fornece companhia, proteção e algum consolo.
aqui, escrevendo, é onde me deparo comigo, é onde me escuto, me conheço, onde acolho quem sou - ainda que algumas vezes pedante e ridícula.
isso me basta para continuar escrevendo e certamente não basta para continuar me lendo. por isso fiquei tão feliz quando me contou o efeito que meus textos de causaram. é bom saber que as minhas palavras atravessaram uma órbita pessoal e conseguiram alcançar um outro espaço - o seu mundo. e que, além disso, provocaram algum espanto, fascínio e direção.
a propósito, sobre o que me escreveu, muitas perguntas feitas me pareceram retóricas. um interesse em saber mais sobre a escritora da newslleter? sim, porém de uma forma mais imaginativa, suposições com um verniz romantizado, sem respostas exatas, creio eu.
e vai por mim, melhor assim, afinal, apenas com convivência e amizade íntimas, conhecemos bem as pessoas e não raro, a decepção vem de brinde.
como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos bem
millôr fernandes
como você sabe, comecei escrever este texto há muito tempo, tive ideias que me pareceram brilhantes e logo em seguida patéticas, travei, retomei repetidas vezes. nos últimos dias a escrita tem fluido e me agradado. neste momento estou questionando o título: “carta aberta…” sei lá, acho meio batido.
um título enfadonho e um escritor que fala sobre escrever, haja saco para aguentar, não é mesmo?!
ainda assim, tenho motivos para não fazer quaisquer alterações:
motivo 1:
o texto é o que é, uma carta-resposta pública a um leitor.
motivo 2:
uma parte de mim gosta de ‘sofrer a angústia das pequenas coisas ridículas', me permitir ser ridícula, assumir ter escrito textos ridículos, títulos ridículos…
sabe aquela sensação de quando você percebe que deu tchauzinho para uma pessoa que estava acenando para outra? então, encarar esse tipo de sentimento, vesti-lo orgulhosamente, pelo menos às vezes, me alivia do fardo da inútil busca pela perfeição.
preciso te dizer também que tudo que foi escrito aqui, querido amigo, não tem a ver com minha baixa autoestima, tampouco com minha severa autocrítica.
no caso desta carta, trata-se de simplesmente encarar a realidade.
todos nós temos partes bonitas e partes feias, partes repugnantes e partes admiráveis. momentos memoráveis e tantos outros sórdidos. para complicar, elas nem sempre há uma dicotomia perfeita, separada e oposta - preto e branco. muitas vezes essas partes estão emaranhadas em uma imensa massa cinzenta indivisível. não sou especial, estou certa de que é assim com todo mundo
no o mundo todo.
para finalizar, espero que esteja bem, fique bem, se cuide, cuide dos seus e de todo aquele que puder cuidar. um grande abraço:
gisele lance.
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se você leu até aqui e apreciou o texto, não se esqueça de deixar seu like para eu saber que você gostou. fique à vontade para comentar, dessa forma podemos interagir. um abraço, um beijo na bochecha e até a próxima!
* ferreira gullar no poema cantiga para não morrer, pensa o esquecimento como parte da memória, um lugar na mente, portanto, parte do ser, assim como mãos, coração e lembranças são partes de uma pessoa.
cantiga para não morrer
quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
e se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.