#nota1: sem medo de dizer que tem medo
Em "Pequeno Mapa do Tempo”, canção integrante do álbum “Coração Selvagem” lançado por Antônio Carlos Belchior em 1977, o cantor e compositor cearense, trata destemidamente sobre medo.
No verso que abre a canção ele diz:
São três palavras numa declaração simples, contrapondo a complexidade do sentido e do sentir.
Trata-se de uma declaração libertadora, como se ao admitir o sentimento, parte do medo se esvaísse. E mais do que isso, a fala não apenas admite o medo, mas o eleva como um estandarte. Há uma espécie de orgulho no enunciado, proveniente não do sentimento em si, mas da coragem de expô-lo. Nesse sentido, é sobre coragem. A coragem de assumir o medo.
#nota2: o raioX do medo
A presença do medo é identificada; ele está em toda parte, por fora e por dentro. A natureza do sentimento também é detectada. Vai desde um simples medo de andar de avião*, até o medo da solidão. Sobre esse último, o artista é responsável por construir, na minha opinião, uma das frases mais pungentes da língua portuguesa:
Certa vez assiti um filme/documentário que mencionava uma pesquisa sobre os maiores medos das pessoas. Para minha minha surpresa, o medo da solidão ocupava o primeiro lugar no pódio, à frente do medo da morte.
Éh Belchior… eu não só abri essa porta, como avancei alguns quilômetros sertão adentro. Olho em volta e o horizonte se perde de vista, tamanha aridez e poeira não me permitem enxergar a saída. Mas convenhamos, se há porta de entrada, deve haver de saída, deve haver…
#nota3: a geografia do medo
Ao citar por nome várias cidades e estados brasileiros e agrupá-los de forma criativa, o cantor antes de mais nada, homenageia seu país. Há carinho transbordando desses versos, especialmente ao repetir “Fortaleza Ceará” na interpretação cantada.
Para além da homenagem, há aqui uma exposição da geografia do medo, tal qual o Brasil, o medo tem proporções continentais. O medo é amplo, é vasto.
Ao “regionalizar” o medo, o poeta nos faz pensar também que esse sentimento pode ser próprio de um lugar, característico de uma região e exclusivo a ela, não sendo possível sentir aquele medo em outro canto.
Ainda na geografia do medo, quando a letra transita de uma cidade para outra, me vem à mente a imagem de um viajante, alguém que migra** levando na mala, roupa, saudade e claro, um bocado de medo.
#nota4: a cronologia do medo
Trazendo profundidade ao sentimento e levando à uma reflexão de fritar os neurônios, no verso acima, o cantor fala de medo e o relaciona ao passado e ao futuro.
Você pode sentir no presente, medo do futuro (projeção) e pode reviver agora, um medo sentido no passado (memória). Mas acontece que, a frase de Belchior não me parece tratar de uma concepção linear do tempo: passado, presente e futuro, tal qual estamos acostumados.
Seria o medo um sentimento que não respeita fronteiras temporais, ele está presentemente*** no "passado” e no "futuro”?
E se ele estiver falando de um sentimento, acompanhado de circunstâncias e acontecimentos que se repetem ciclicamente?
“Homem! Tua vida inteira, como uma ampulheta, será sempre desvirada outra vez e sempre se escoará outra vez, – um grande minuto de tempo no intervalo, até que todas as condições, a partir das quais vieste a ser, se reúnam outra vez no curso circular do mundo. E então encontrarás cada dor e cada prazer e cada amigo e cada inimigo e cada esperança e cada erro e cada folha de grama e cada raio de sol outra vez, a inteira conexão de todas as coisas”
– Nietzsche, Vontade de Potência, §25
Uma influência do pensador alemão não surpreenderia, visto que Belchior estudou filosofia no final da década de 1960. E me pergunto, seria essa uma abordagem cosmológica ou apenas filosófica?
…
#nota5: a psicologia do medo
Nesse trecho até bem humorado da canção, fica claro uma dependência do medo. Ao morrer (acabar), um medo precisa ser substituído por outro. Colocar a desesperada frase: “o que será de mim?” nesse contexto, intensifica o problema, a saber, a ausência do medo. Então, ele repete a solução encontrada:
“Manda buscar outro, maninha no Piauí”.
O sujeito se acostumou tanto com o medo, a ponto de não saber viver sem ele. Paradoxalmente assim, surge o medo de viver sem medo.
Em alguns momentos, ele canta suavemente: medo, medo, medo, medo, medo… O mesmo estribilho presente em: "Na hora do almoço", onde aliás, consta uma solução pragmática, não só para o medo, mas para outros problemas que orbitam nossas mentes:
Tenho seguido o conselho, tenho deixado de “coisas”…
Terça, quinta e sexta são dias de colocar o lixo para fora, confesso que o de sexta-feira, (por ser reciclável) me causa uma preocupação maior, redobro os cuidados para não esquecer.
Lavar, passar, cozinhar, limpar, ir ao mercado, ir à academia, cumprir com a dieta, trabalhar… As obrigações do cotidiano consomem boa parte do meu dia. A noite chega, o sono me atinge, me permito ser atingida por ele, ao invés de ficar com "coisas” na cabeça, durmo. No outro dia acordo e, tudo começa outra vez.
Tenho cuidado da vida.
Há que se ‘deixar de coisa’ sim, há que se ‘cuidar da vida', urgentemente, para não ser ‘arrastado sem ter visto a vida’.
Mas, o que é cuidar da vida? Para além do pragmatismo muitas vezes necessário, cuidar da vida é, continuar apesar do ordinário e apesar do horror, enxergando a beleza. É preciso saborear o sublime no dia a dia. Algumas vezes, escancaradamente extraordinário, em outras, trajado de simplicidade ou disfarçado de pequenas sutilezas.
Por fim meu querido Belchior, posso dizer seguramente que “amar e mudar as coisas, me interessa mais,” ****porém, ao contrário do que você afirma na canção, (e a própria produção deste texto é prova disso) também estou, não poderia deixar de estar ‘interessada em alguma teoria, em alguma fantasia e no algo a mais’.
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NOTAS:
* o medo de avião foi tratado de forma específica em uma outra canção de Belchior, cujo o nome é justamente esse, “Medo de Avião”.
** a migração é um tema recorrente na obra de Belchior, quem não se lembra dos famosos versos: “Eu sou apenas um rapaz latino-americano. Sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior”?
*** palavra que abre a canção "Sujeito de Sorte", música que se tornou um verdadeiro hino do cancioneiro brasileiro e lema de resistência. Nela se encontra os famosos versos:
Tenho sangrado demais
Tenho chorado pra cachorro
Ano passado eu morri
Mas esse ano eu não morro
Belchior teria parafraseado o repentista paraibano Zé Limeira, muito embora haja controvérsias sobre a autoria original do trecho.
**** Alucinação- canção presente no álbum homônimo, lançado por Belchior em 1976.
Gostei bastante do texto, me fez ficar pensando sobre a palavra presentemente.
Fiquei pensando até “doer” a cabeça kkkk