cheguei exausta. coração na mão. sacolas no chão. corpo jogado no sofá. e o sofá que só faz compor a decoração, dessa vez fez mais.
o pensamento resgata a cena vista há pouco. o vai de rodas, o vem de passos. rostos indistinguíveis- vultos e rastros. pessoas em uma avenida são tão…urgentes. e onde vão com tanta pressa? fazer as compras da semana? bater o ponto no horário? fazer o check-in no aeroporto? pegar o filho na escola, um lugar no futuro? vão em busca do que? da averbação do divórcio? subir de cargo na firma? do boleto quitado? de um sono tranquilo?
rumo certo. horário excedido. olhos olham, mas não observam. não há contemplação em uma avenida - em uma avenida há negócios. lembrei da etimologia da palavra negócio… lembrei mais uma vez de Paulinho da Viola. a estrutura deste texto surgiu e desapareceu na poeira das ruas, sim, eu tinha algo dizer, mas me foge à lembrança...
fiquei amedrontada com os efeitos - do vírus e de duas semanas em total isolamento. ainda não tinha vivenciado nem um, nem outro. o trabalho na agência de marketing me exige apenas um computador e um celular, não há necessidade alguma de ser presencial, QUANTO MAIS EM UMA PANDEMIA - digo em caps lock assim gritando mesmo, aff!
para ser exata, de home office home office, ficamos apenas uma semana - época em que morava com minha mãe, ou seja, não fiquei sozinha pra valer.
aqui na cidade foram poucos dias de ruas vazias e portas de comércio fechadas. o lockdown foi levado a sério por pouquíssimo tempo. no mais, tem oscilado em momentos de flexibilização e clandestinidades.
por sorte ou azar - não sei - bem no momento em que estou morando sozinha, testei positivo para Covid.
esses dias estranhos certamente vão deixar sequelas. e não estou falando de um paladar descalibrado, uma queda de cabelo, uma memória falha, tampouco deste texto. provavelmente, com alguma distância na corrente do tempo a gente consiga entender melhor os impactos da pandemia - no mundo e na nossa vida. por ora, à quente, só consigo fazer esse recorte ínfimo e pessoal.
já fora do período de contágio, depois de dias em completo isolamento, precisei ir ao mercado; este texto, a partir de agora, tratará basicamente da estranha sensação de voltar às ruas - a estranha sensação de voltar à vida.
desço os dois lances de escada. pouco fôlego, muita hesitação. lá está ela - a rua.
a vida acontece lá fora. e aqui dentro? há vida aqui dentro?
os primeiros passos me causam um sentimento de… ilegalidade.
“posso mesmo fazer isso? posso andar pelas ruas, ir às compras?”
olho para baixo e o trocar de passos revela canelas e pés espantosamente brancos. concluo numa fração de segundo: a ausência de sol não fez bem, nem a mim, nem a Londres. Penso isso sem nunca ter ido à Londres, provavelmente por causa da série Sherlock, aquela cena em que Mary Morstan chega na capital britânica, olha para cima e diz algo como:
- vocês perderam o sol na guerra?
adoro piadas históricas, mas isso importa a um total de zero pessoas, então, voltemos à narrativa daquele dia bizarro:
Brasil 2021, há infinitos dez dias do quinto dia útil do mês. o apartamento é alugado, sou CLT, mas preciso fazer freela para complementar a renda. meus meios de transporte se alternam entre Uber e meus pés.
nesse contexto financeiro, ir ao mercado tem sido uma experiência de agonia e quase dor. entre o muito que é oferecido e o pouco que se pode pagar, há a dignidade de uma mulher de trinta e quatro anos, no chão- nocauteada.
depois de um certo tempo caminhando, as sacolas ainda que escassas, ficam pesadas. nessa manhã não porto beleza alguma. meu andar não emite graça qualquer. o que sobra do meu rosto escondido pela máscara, carrega um traço sôfrego. anseio chegar em casa logo, livrar-me do fardo que carrego, mas o apartamento a cada dois passos que dou, recua uma quadra.
um homem passa por mim e fita-me descaradamente. percebo aquele olhar em minha direção, então olho em revide na tentativa de provocar algum constrangimento - em vão. abaixo a cabeça e volto a tomar consciência do peso das sacolas. continuo andando até sair do campo de visão do sujeito, mas ele gira a cabeça e continua me observando. o homem é persistente.
o vento levanta ocasionalmente minha camiseta deixando uma larga faixa de barriga à mostra. as mãos, ocupadas em carregar os mantimentos, nada podem fazer. toda aquela pele descorada vai permanecer exposta.
volto a me chocar com a palidez das minhas canelas e pés. nesse momento um sentimento de vergonha me invade. mas ao invés de tentar entendê-lo, o que me vem à mente é o sonho da noite anterior.
uma festa de gala e lá estou eu, rodeada de pessoas; maquiagem, cabelo penteado, vestido de seda, tudo parece irretocável até que olho para baixo:
meu Deus! estou descalça e com os pés pavorosamente sujos.
chega de sujeitos que perseguem com olhar, chega de pensamentos aleatórios. aperto o passo, é urgente chegar em casa. não é só o peso das sacolas que me aflige, sinto-me demasiadamente pública. anseio por muros, grades, portões, portas, janelas e cortinas. preciso chegar em casa, preciso chegar em casa…
éh, a rua não é brincadeira. a rua exige coragem.
a vida não é brincadeira. estamos aqui sem ensaio, todos pela primeira vez e, valendo. a vida exige coragem.
às vezes temo não estar “no ponto”. talvez ainda esteja crua - branca demais.
O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito ― por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia.”
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas, página 293.
um texto de 2021.
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um abraço, um beijo na bochecha e até a próxima!