eu me lembro, lembro muito bem daqueles sábados da infância em que uma alegria gratuita me invadia o peito. dos olhos azuis do meu avô — tão reluzentes. da curva que fazia o corredor de casa e da canção do renato.
lembro do abraço apertado de quem já não está mais aqui.
e as notas de almíscar? outro dia senti no ar, como se um querubim tivesse borrifado o perfume em um canto e o vento soprado até mim.
lembrei também daquela quinta-feira, e na dor sentida, senti — ressenti.
lembrei do endereço antigo e daquele número de telefone que não existe mais. lembrei daquele bairro — as ruas todas com nome de pássaro. lembrei do primeiro poema decorado e do vestido de cetim.
lembrei da queda do patins que me deixou sem voz e daquela ligação que me deixou sem chão.
lembrei de gibi, violino e de um amor puro.
lembrei da parede toda escrita de gis. daquele 98, os gols do Zidane, o lamento — a solidão aos 10.
lembrei do medo, do cabelo crescido e da barba por fazer, do olhar cruzado, da tentativa frustrada — solidão aos 20.
a solidão aos 30 não preciso lembrar, ela está aqui — caminha há uma certa distância, é verdade, mas permanece à espreita.
é tempo de esquecer…
preciso esquecer o pedido de ajuda não atendido, o abandono, a rejeição.
preciso esquecer o medo, a confusão, a incompreensão — as escolhas erradas, as escolhas certas pelos motivos errados.
não posso lembrar, remoer, a menos que fosse uma vez por semana, em uma sessão de terapia, mas sem dinheiro para pagar, se quer tenho direito de lembrar. também não tenho tempo de lembrar, há outras coisas que clamam — a rotina nos engole.
não posso esquecer de acordar no horário.
de comer proteína em todas as refeições.
de tomar creatina.
de fazer os alongamentos.
de levar o cachorro para passear.
de colocar água nas plantas.
não posso esquecer de entregar o trabalho da faculdade, nem os dias das provas. não posso esquecer de colocar o celular, computador e os fones para carregar, quase me esqueço — Kindle também.
não posso esquecer de bater a cota diária de água.
de treinar.
de manter a postura ereta.
não posso esquecer de ser produtiva no trabalho
e criativa.
e inovadora.
e atenta.
e simpática. por tudo que é mais sagrado, não posso esquecer de ser simpática.
não posso esquecer de repor o shampoo, o condicionador, o detergente e o álcool nos recipientes que comprei exclusivamente para isso.
não posso esquecer de colocar a roupa para bater, principalmente meias e calcinhas. estender as que estão na máquina, recolher as que estão no varal e passar as que estão dobradas.
não posso esquecer de marcar no app de saúde o dia da menstruação.
não posso esquecer o dia de ir no nutricionista.
e na massagista.
e na manicure.
não posso esquecer os dias de colocar o lixo para fora, o orgânico e o reciclável.
não posso esquecer de abrir os e-mails e de responder o whatsapp.
e o telegram.
e o direct do instagram.
não posso esquecer de ler o jornal de literatura que fechei o plano anual, pelo menos as minhas sessões preferidas.
não posso esquecer de ser mais paciente,
de não cortar as pessoas enquanto falam,
de não pressupor, ouvir — ouvir bonito.
não posso esquecer de não julgar —compreender.
não posso esquecer,
não posso esqu…
preciso lembrar, mas esqueço. preciso esquecer, mas lembro.
.
.
.
se você leu até aqui e apreciou o texto, deixe seu like para eu saber que você gostou. fique à vontade para comentar, dessa forma podemos interagir.
importante: essa newsletter é e sempre será gratuita. mas, caso sinta no coração vontade de apoiar minha escrita, assine o plano de R$ 5.00 por mês/
R$55.00 por ano, ou assine o plano mecenas e seja um membro fundador por R$100.00 por ano.
há ainda a possibilidade de fazer um pix de qualquer valor, a qualquer momento.
chave pix (e-mail)
lancegisele@gmail.com
um abraço, um beijo na bochecha e até a próxima!