dia desses pedi um uber para ir até a minha sessão de drenagem linfática. o uber chegou antes que eu ficasse impaciente. olhei para o uber e era um senhor. engraçado como chamamos de “uber” o aplicativo, o carro e a pessoa que dirige o veículo.
cabelos brancos e finos, me espantou a espessura daqueles fios que pareciam flutuar enquanto o vento entrava pela janela. uma calvice frontal avançada, porém na parte de trás da cabeça, o cabelo embora ralo, estava crescido e cobria a nuca. em algum momento me lembrou erasmo no final da vida. pelo menos visto assim, pelas costas.
o rosto eu não conseguia ver direito, o uber usava máscara.
mil pensamentos invadem minha mente:
em pleno 2023 e ainda tem gente que usa máscara!
ser por causa do entra e sai de gente no carro, talvez dessa forma ele se sinta mais seguro.
eu não conformo o quanto essa clínica é longe, se fosse mais centralizada eu iria à pé, não teria que gastar dinheiro com uber.
talvez ele esteja gripado, decidiu colocar a máscara pensando no bem-estar de todos.
ele não parece gripado.
a esfirra desse lugar é muito boa, pena que demoram tanto pra entregar.
às vezes ele se acostumou a usar máscara na época da pandemia e se não a coloca parece que está faltando algo.
nosso mal é esse, a gente se acostuma com tudo!
como é mesmo aquele texto maravilhoso que o abujamra interpreta brilhantemente?
"…a gente se acostuma para poupar a vida. que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar e se perde de si mesma."
esse uber deve ter votado no lula…
eu não seria capaz de apostar que ele votou no lula, mas no bolsonaro ele não votou.
se bem que, meu padrasto usava máscara o tempo todo, quilos e quilos de álcool em gel, tomou a vacina quatro ou cinco vezes e, contrariando as expectativas: votou no bolsonaro.
alguns toques na tela do celular preso no suporte e a filha atende:
“ooi paaai!”
o uber pergunta se vão buscar alice. ela o tranquiliza, responde que sim, inclusive já estão a caminho, só tinham parado mesmo para abastecer o carro.
era uma sexta-feira e antes de encerrar a ligação o uber pergunta:
_“filha, você e o edu vão sair hoje?”
ela responde dizendo que provavelmente iriam comer fora, algo assim…
_“oh, eu até aceito sair com vocês, se pagarem a conta”.
ela ri alto e diz algo que não me lembro bem. o clima que se instaura dentro do uber é de absoluto carinho e intimidade. tateio o ar na tentativa de alcançar o sentimento que, naquele momento, me parece palpável.
não tendo uma ligação alheia para prestar atenção, minha mente volta a produzir pensamentos aleatórios:
por que ainda não superei o fato de não ter tido um pai presente?
quantos minutos já gastei reescrevendo minha história, inventando pormenores e me entretendo com episódios de uma relação entre pai e filha?
quantas vezes retomei os capítulos mentais e os decorei com arabescos de detalhes cada vez mais rebuscados? uma história tão verosímil e tão revisitada que chega a parecer que aconteceu.
nosso mal é esse. a gente nunca se acostuma!
olhei em direção aos pedais do carro, talvez se pudesse enxergar o calçado que o uber vestia. estiquei o pescoço em vão, não deu para ver os sapatos do uber. a calça jeans e a camiseta básica não foram capazes de fornecer alguma pista sobre em quem teria votado o uber de máscara.
se tivesse ouvindo jovem pan: votou no bolsonaro. se tivesse tocando chico ou caetano: votou no lula. mas com esse silêncio todo, como vou saber?
será que ele votou no ciro? humm… acho que não. quem vota no ciro?
e se eu perguntar com a desculpa de que é para meu tcc? ele nem deve saber que esta frase “é para meu tcc” é um meme no twitter.
tão simples: uma pergunta, uma resposta e dou cabo a todo esse mistério.
mas isso seria muito indelicado da minha parte. vai parecer que sou louca.
tudo depende da forma como se pergunta… posso primeiro puxar um assunto, criar um contexto. é vou fazer isso…
mas e se ele disser que votou no bolsonaro? depois de uma resposta dessa, em que caixa o colocarei? de incoerente já basta meu padrasto.
se ele ao menos comentar sobre o clima, o tempo, o trânsito… aff, como sou péssima para puxar assunto!
queria tanto morar nesse condomínio de xácaras…
olha, francamente essa clínica é longe para um caralho!
esse uber é gente boa! não ficou com falação enchendo o saco. tem uma relação boa com filha, genro e neta.
deve morar sozinho, ser separado ou viúvo.
alice é um belo nome!
quanta diferença do uber do outro dia, aquele garoto votou no bolsonaro, sem sombra de dúvidas!
não tinha completado nem um minuto de corrida e tagarelava sobre a construção do sesc, em menos de cinco minutos, afirmava: “o pt é comunista”.
nem devia ter debatido com ele, o sujeito porta um tipo de burrice cristalina. precisa ser deixada assim, tal qual um objeto de observação:
“olha essa burrice, tão cristalina, tão intocável!”
nesse momento, abri as janelas do uber. deve ter sido para sair o ar de arrogância que me sufocava. agora não sei se, a do garoto ou a minha.
_“é ali na frente, pode parar o carro perto daquele barzinho, por gentileza”.
_“ah, é ali?! eu trouxe minha filha nesse prédio uma vez, era um estúdio algo assim…”
_“sim, sim. tem várias salas. muito obrigada, viu. bom fim de semana pro senhor”
nos dias à frente, fiquei refletindo sobre o fato do uber não ter dito nada o trajeto inteiro, exceto ao mencionar que havia levado a filha naquele mesmo lugar que me deixara e ao ligar para ela. os dois momentos em que ouvi a voz dele, estavam relacionados com a filha.
fiquei pensando também no meu vício recém adquirido de julgar se uma pessoa votou no lula ou no bolsonaro e na quantidade de tempo que passo pensando em questões políticas, o que envolve tudo, afinal
‘tudo é sobre política, exceto a política; política é sobre poder’.
política é sobre poder? o que realmente é política?
bem, esses questionamentos vão ficar para outro dia. prefiro finalizar com um último devaneio:
“talvez um dia eu volte a pegar aquele uber, talvez eu conte que escrevi um texto sobre ele. talvez ele comente aqui embaixo em quem ele votou.”
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um abraço, um beijo na bochecha e até a próxima!
Realmente é raro motoristas de uber que não puxam assunto, e acabam caindo sempre na mesma conversa: Política. Assunto que para muitos igual eu estamos fartos desse lado B e lado A.
Pode se dizer que o texto deixa algo a se pensar as vezes; que as pessoas não são “UBER aplicativo” e sim humanas e imperfeitas igual a nós mesmos. Muitos não dão nem um simples “bom dia” ao motorista que aceitou sua corrida para levá-lo ao seu destino. Enfim, texto muito bom e reflexivo.