dizem que “há quem fique velho e não fique sábio” - dentro dessa ótica, o simples passar do tempo não traz automaticamente sabedoria. bem, eu ainda não estou velha, — embora o subtítulo deste texto me contradiga — nem sábia, ainda assim, não pude deixar de notar que a última década passou por mim vestida de alguns ensinamentos valiosos. é irônico, contudo, que o maior de todos esses aprendizados, foi constatar quão pouco eu sei, foi ver destituídas, destronadas, a maioria das minhas certezas. foi ver ruir meu velho mundo conhecido e surgir diante dos meus olhos uma “outra” realidade - a realidade.
a sensação de que um véu foi removido de diante dos meus olhos tem me tornado menos dogmática e maniqueísta, entendendo que a materialidade - fruto de um processo histórico - está o tempo todo esfregando na nossa cara uma realidade complexa, interligada e cheia de contradições, e ela é o que é, não o que eu gostaria que fosse.
no final das contas, os últimos anos levantaram mais perguntas do que responderam, então a ficha caiu:
as outras fichas que me caíram são gêmeas, pari as duas de uma só vez. porém, seguindo a estrutura do texto vou deixar a declaração “a ficha caiu” para o final.
bem, não faz muito tempo, passou pela minha timeline o corte absurdo de um podcast em que a pessoa entrevistada afirmava algo assim: “a gente tem uma empresa chamada vida… nessa empresa tem cargos… cargo de parceiro… vários funcionários…”
fiquei pensando no absurdo que é aplicar uma lógica de gerenciamento à vida. como diria o professor cerginho da pereira nunes:
ser exponencialmente produtivo, checklists intermináveis, bater metas rígidas, otimizar o tempo. tudo isso só faz sentido no contexto de um negócio cujo objetivo principal é lucro. o problema é que as fronteiras do que é vida, e do que é trabalho, estão cada vez mais indistinguíveis.
‘o correr do neoliberalismo embrulha tudo’
quando a gente vê, já se está “dançando conforme a música”. dia desses por exemplo, me flagrei lendo os parágrafos de forma apressada, sem entender bulhufas. o pensamento em looping: tenho que virar a página logo, tenho que acabar de ler o livro logo, tenho que começar outro logo, tenho que atingir a meta de leitura logo…
percebi que até mesmo as famosas resoluções de início ano se tornaram monstros, dívidas que precisam ser pagas em muitas prestações ao longo das semanas. e, tal qual um agiota, estão sempre à espreita para cobrar. fui treinar? “tá pago”. não fui treinar? vou pagar de qualquer jeito! vou pagar com a culpa ao abrir o instagram e ver aqueles que estão conquistando o shape perfeito enquanto a minha gordura se acumula nos flancos e a massa muscular escorre pelo ralo.
o prazer da leitura, a busca pela saúde e autoestima, não podem ser transformados em obrigações de desempenho. toda a complexidade do ser — a subjetividade com todas as suas nuances — não pode ser suprimida à um modelo de gestão.
é estranho essa ficha ter que cair, mas enfim caiu:
confesso que fiquei tentando conectar tudo e formar um texto coeso, mas acabei desistindo. isso aqui é mais um desabafo do que qualquer outra coisa. por um lado, é bom que pareça um tanto caótico.
às vezes, só às vezes, é preciso ‘ perturbar a ordem vigente e introduzir um pouco de anarquia’.

já tem um bom tempo que estou de saco cheio de coach, o que dificulta é que eles estão por toda a parte, em muitas variações - do coach mirim ao coach quântico e,
em terra de coach, quem tem maior poder de formar frases absurdas é rei:

“não existe pobreza que resista a 14 horas de trabalho”
“trabalhe enquanto eles dormem”
“saia da sua zona de conforto”
“o dia de todo mundo tem 24 horas”
“nunca foi sorte, sempre foi deus”
falácias como essas — difundidas em uma espécie de doutrinação — fazem parecer que unicamente através do esforço individual é possível garantir uma boa situação financeira, e se minha situação financeira não é boa, é porque não me esforcei o suficiente, não tomei banho gelado, não acordei mais cedo, não arrumei minha cama, blá, blá, blá…
tanta individualização não apenas fabrica sujeitos frustrados e burnout à rodo, mas desvia a atenção das origens reais dos problemas, que dessa forma, permanecem imutáveis na estrutura da sociedade.
porém, é bom que se diga: este texto não propõe solução alguma.
não chega a ser um texto inútil porque pretendo publicá-lo, talvez provoque alguma reflexão, ou no mínimo serviu para abrigar meu desabafo. mas, de toda forma, é importante pra mim, neste momento, que tenha o mínimo de utilidade possível.
quero o prazer de escrever um texto quase inútil.
estou cansada,
todos estamos cansados,
não há como não estar.
é demasiado cansativo viver sob a égide do utilitarismo e perceber que dentro dessa lógica arbitrária, tudo precisa ter valor de uso e valor de troca.
e eu pergunto, por definição, o que é o que tem valor de uso e valor de troca?
— mercadoria.
muito bem, resposta exata.
a ficha caiu:
ainda bem que arte parece sempre apontar um caminho, e diante de uma constatação triste dessas, eis que surge à minha mente lygia fagundes telles:
“ouça, virgínia, é preciso amar o inútil. criar pombos sem pensar em comê-los, plantar roseiras sem pensar em colher rosas, escrever sem pensar em publicar, fazer coisas assim, sem esperar nada em troca. a distância mais curta entre dois pontos pode ser a linha reta, mas é nos caminhos curvos que se encontram as melhores coisas. a música - acrescentou, detendo-se ao ouvir os sons do piano num exercício ingênuo - este céu que nem promete chuva - prosseguiu. - aquela estrelinha que está nascendo ali... está vendo aquela estrelinha? há milênios não tem feito nada, não guiou os reis magos, nem os pastores, nem os marinheiros perdidos. não faz nada apenas brilha. ninguém repara nela porque é uma estrela inútil. pois é preciso amar o inútil porque no inútil está a beleza. no inútil também está deus.”
ciranda de pedra, 1954.
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